É claro que não me enquadro no perfil de mulher perfeita, daquelas que os homens anseiam por casar. Vejo claramente neste espelho embaçado deste hotel de quinta categoria. Olhos manchados pelo lápis que ontem realçava os meus tão admirados olhos verdes, alvo de cantadas e frases feitas. Ironia. Tu quando criança com todas as tuas bonecas e brinquedos-família, vem desenhando um futuro que tão logo se alcança a adolescência deseja ter: “um lar, filhos, marido etc.” Mas eu, Renata, nunca tive tempo de ser criança. Tão logo me descobri nessa fase, perdi-me por completo. Minha infância começou de fato assim que nasci e acabou, abruptamente, naquele agosto maldito – mês do desgosto – em que ele me veio violentar. Lembro-me bem do vestido que usara aquele que mamãe me dera no último natal, rodado tal qual eu queria e desejava, para assim dançar as lambadas que meu avô insistia em tocar em sua antiga radiola, flores muitas havia naquele vestido, parecia-me estar vestida de pura primavera. E contente estava. Linda e não somente meus olhos me viram bela naquele dia, infelizmente.
A casa estava só e eu brincava com o eco. Mamãe havia saído às compras com Margarida, a moça que tio Tony dizia ser dona de desejos infinitos. Não entendia o que queria dizer, mas sabia que ele a achava muito bonita, porque seus olhos a fitavam sempre que ela ia lá a nossa casa, tentava ser o mais cavaleiro possível. Coisa que não combinava de fato com ele. – Boca suja. – Era assim como mamãe o chamava todas as vezes que ele chegava bêbado em casa com os seus amigos vagabundos. O que era vagabundo? Eu não sabia. Mas sabia que era algo do tipo xingamento, porque os lábios de mamãe franziam e sua testa vincava todas as vezes que ela pronunciava isso. E lá estava eu, assistindo desenhos animados e com a minha Barbie que recém havia ganhado de meu pai que muito viajava. Nesta última viagem me trouxera a boneca, a fim de acarinhar-me. E conseguiu.
Tio Tony entrou na sala cambaleando, seus pés trocavam-se continuamente, e eu ria dele. Pobre de mim. Ele me notara e com a voz estridente disse-me: “Está sorrindo do quê garota estúpida? Acaso sou eu palhaço?”. Lembro de cada palavra assim, nessa mesma seqüência, sem tirar qualquer vírgula ou interrogação. Os meus olhos enormes arregalados viram ele aproximando-se de mim. E antes que eu pudesse desculpar-me lá estava ele cobrindo-me de cascudos e tapas, eu gritava, mas ninguém me ouvia. Tampou-me a boca com as grandes mãos e da primavera me despediu. Eu chorei. Não entendia o que ele estava fazendo comigo, ele me apertava contra o chão, segurando-me as mãos com a outra mão livre e me rasgava por dentro. Podia sentir isso. Eu chorava desejando que ele saísse de cima de mim, porque ele estava me machucando. Aquele dia, 25 de agosto, morri para a vida. Ele, tão logo tirou seu corpo imundo e seus lábios amargos de bebida e cigarros de cima de mim, disse que mataria a mim e aos “porcos” de meus pais caso eles soubessem de algo. E então eu escondi. Até hoje.
E hoje aqui estou em frente a esse espelho de cantos quebrados, neste banheiro que mais parece público. Lembrando daquele dia que minha alma desprendeu de meu corpo, do dia que deixei de ter vida. Todos os dias me são iguais, dolorosos, tortuosos, porque não consigo apagar da memória as palavras horríveis que ouvi o amargo dos meus lábios, e todas as marcas que insistem em não cicatrizar em mim. Tornei-me assim: insegura, vazia. Dada a loucura, a tristeza tremenda. E hoje te digo, Renata, que me olhas neste espelho assustada: “Este será teu último dia. O teu último suspiro. Não mais verás o passado novamente em tua mente, porque aliviarei a tua dor."
A casa estava só e eu brincava com o eco. Mamãe havia saído às compras com Margarida, a moça que tio Tony dizia ser dona de desejos infinitos. Não entendia o que queria dizer, mas sabia que ele a achava muito bonita, porque seus olhos a fitavam sempre que ela ia lá a nossa casa, tentava ser o mais cavaleiro possível. Coisa que não combinava de fato com ele. – Boca suja. – Era assim como mamãe o chamava todas as vezes que ele chegava bêbado em casa com os seus amigos vagabundos. O que era vagabundo? Eu não sabia. Mas sabia que era algo do tipo xingamento, porque os lábios de mamãe franziam e sua testa vincava todas as vezes que ela pronunciava isso. E lá estava eu, assistindo desenhos animados e com a minha Barbie que recém havia ganhado de meu pai que muito viajava. Nesta última viagem me trouxera a boneca, a fim de acarinhar-me. E conseguiu.
Tio Tony entrou na sala cambaleando, seus pés trocavam-se continuamente, e eu ria dele. Pobre de mim. Ele me notara e com a voz estridente disse-me: “Está sorrindo do quê garota estúpida? Acaso sou eu palhaço?”. Lembro de cada palavra assim, nessa mesma seqüência, sem tirar qualquer vírgula ou interrogação. Os meus olhos enormes arregalados viram ele aproximando-se de mim. E antes que eu pudesse desculpar-me lá estava ele cobrindo-me de cascudos e tapas, eu gritava, mas ninguém me ouvia. Tampou-me a boca com as grandes mãos e da primavera me despediu. Eu chorei. Não entendia o que ele estava fazendo comigo, ele me apertava contra o chão, segurando-me as mãos com a outra mão livre e me rasgava por dentro. Podia sentir isso. Eu chorava desejando que ele saísse de cima de mim, porque ele estava me machucando. Aquele dia, 25 de agosto, morri para a vida. Ele, tão logo tirou seu corpo imundo e seus lábios amargos de bebida e cigarros de cima de mim, disse que mataria a mim e aos “porcos” de meus pais caso eles soubessem de algo. E então eu escondi. Até hoje.
E hoje aqui estou em frente a esse espelho de cantos quebrados, neste banheiro que mais parece público. Lembrando daquele dia que minha alma desprendeu de meu corpo, do dia que deixei de ter vida. Todos os dias me são iguais, dolorosos, tortuosos, porque não consigo apagar da memória as palavras horríveis que ouvi o amargo dos meus lábios, e todas as marcas que insistem em não cicatrizar em mim. Tornei-me assim: insegura, vazia. Dada a loucura, a tristeza tremenda. E hoje te digo, Renata, que me olhas neste espelho assustada: “Este será teu último dia. O teu último suspiro. Não mais verás o passado novamente em tua mente, porque aliviarei a tua dor."
Sabe o que me dói? Saber das Renatas existentes neste Brasil. Fico com um sentimento de impotência...
ResponderExcluirMas quando se dá a escrita, demônios são exorcizados.
E quando uma dor se alivia é que acabam todas as outras plausíveis.
Teu texto é divino! Mas, alguém com teu talento, me diz, poderia ser diferente? rs
Beijos.
Sem palavras! Estou de olhos arregalados, boca aberta e completamente perplexo com a história de Renata! É com textos e abordagens assim que nos fazem pensar nesses problemas. Como podemos no dizer evoluídos ou seres inteligentes se coisas assim continuam acontecendo?
ResponderExcluirMuito bom!
ATENÇÃO!
ResponderExcluirPOSTAGEM COLETIVA AMANHÃ.
O contrário de bonito é feio, de rico é pobre, de preto é branco, isso se aprende antes de entrar na escola (...) o contrário do amor não é o ódio, é a indiferença." Podíamos escrever sobre indiferença... ou fingir indiferente. Anda de mãos dadas com nossos sentimentos...
(Brenner).
Maiores informações aqui = http://postcoletivo.blogspot.com/2010/01/postagem-coletiva-13012010.html
história triste, triste por ser real, real para tantas...
ResponderExcluirUm nó se formou em minha garganta. Existem tantas Renatas por aí, que sofrem caladas e tornassem apenas zumbis ambulantes, sem vida.
ResponderExcluirTeu texto mexeu bastante comigo. Muito triste.
Lembrei de Renata cantada pela banda Tihuana:
ResponderExcluir"Ela não sabia o que é o amor
Ela não sabia, mas
Pensou em se casar
Ter um filho pra criar
Quis provar o que é o amor
Mas teve medo de se apaixonar
Então partiu
Mas uma vez se foi
E ninguém vai esperar
Por alguém assim
Pro resto da vida"
Nessas horas é que tenho certeza que matar não é uma má opção.
Pensei, antes de ler, que Renata é um nome bonito e comum. Depois de ler, pensei que você havia escrito uma história que relata a vida de tantas meninas por aí... quase comum.
ResponderExcluirBem escrito, gostei.
Beijo, Pâm!
se eu encntrasse a Renata, pegaria ela no colo, e cantaria uma canção de ninar... uma canção de esperança.
ResponderExcluirq texto forte menina! ganhou um seguidor
bjs
Muitas pessoas ai, tem um pouco de Renata dentro de si. não por questão de violência moral, mas violência com tantas outras áreas da nossa vida !
ResponderExcluiré triste mas é algo real,
eu achei seu texto bem real em relação que foi proposto.
/saudades Mel' :'(
Vou sussurrar aqui o mesmo que falarei amanhã.
ResponderExcluirTu escreve tão doce, que quando fazes o contrário me deixa de queixo caído, boba com tua capacidade de narrar o real-imaginário.
Leia-se doce. Não mais, nem menos feio. Tudo que tu escreve, com suas peculiaridades, é perfeito.
Beijo amore,
comenta no meu blog! :P
Haha, Fê.
ResponderExcluirTu é um máximo: "comenta no meu blog! :P
Morri de rir aqui. Porque as pessoas podem até não perceber, mas há um sarcasmo profundo aí, hahaha.
"Oi teu texto é legal.
Calei.
Te amo, boneca.
Comum... As pessoas o dizem fácil, mas tornam-se cegos, surdos e mudos diante do “comum” – hipocrisia.
ResponderExcluirNão quero exagerar, mas tome meu exagero pelo elogio: descrição minunciosa que seja a ser maravilhosa!
Beijos
;*
lindo... mas achei triste..
ResponderExcluiramei!!
bjus
Esse é aqueele tipo de texto que te deixa com um nó na garganta só em um parágrafo.
ResponderExcluirMas, apesar de triste, eu gostei. Quantas já não sofreram disso e nunca colocaram seus demônios para fora, não é?
;**
Me emocionei com seu texto!!
ResponderExcluirConsegui visualizar a cena e me entristeci muito,por ver que é a realidade de tantas meninas.
vc escreve muito bem.Parabéns!!